O CORAÇÃO E OS CAMINHOS DA LIBERDADE E DA RESPONSABILIDADE
“Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4:23)
Os Provérbios são a coletânea sagrada de ditos populares de sabedoria do antigo povo de Israel, eles servem para guiar a vida prática em direção a felicidade e à sabedoria, um caminho de vida que se resume naquilo que ele chama de “temor do Senhor” – aquela reverência filial diante de alguém maior do que eu, tão amada por mim que me recuso a querer ofendê-la.
Dentre os muitos conselhos que os sábios de Israel nos deixaram, um deles ressalta diante dos nossos olhos: “sobre tudo o que se deve guardar, guarda o coração […]”
O caminho da felicidade humana não é bifurcado, não é variado ou opcional. Se queres ser feliz, um caminho só é possível, a saber: o que começa pela vigia do coração. “Sobre tudo” ou “acima de tudo”, deves “guardar”, “vigiar”, “manter sob contínua atenção” o teu “coração”, porque ele é a fonte de tua vida, ou, noutras palavras, do teu coração procederão os atos, vontades, objetivos e sentimentos que guiarão a tua vida para uma ou outra direção. Põe atenção completa sobre o teu coração, pois ele é o timão do barco de tua existência, pois para onde ele se virar, para aí a tua vida se dirigirá.
Surge, então, a pergunta: que é, pois, o coração?
Talvez, quando ouvimos sobre o “coração”, logo o associamos a uma metáfora para a sede da afetividade humana, como o local metafórico de nossa vida, ali onde são gerados os sentimentos mais diversos. Daí, quando alguém nos fala de um “coração aflito”, pensamos logo em alguém com sentimentos de aflição. Mas será que esta palavra significava isso para os antigos hebreus?
Para os antigos povos orientais, a sede da vida interior era o coração. Assim, tanto o hebraico “leb” quanto o acádico “libbu”, expressam a mesma ideia: o coração é a sede do Eu, o centro diretivo da pessoa, a sua sala de comando. Daí que o coração seja não somente uma metáfora para a afetividade, mas também para a intelectualidade, para os juízos morais, afetos e vontades.
Neste sentido, tudo o que se passa em nós e que não é visto “de fora”, é “coração”. Tudo aquilo que somos e que a nossa máscara social encobre, tudo o que pensamos, queremos e amamos e que está ocultado do mundo exterior, isto é coração. Há, no entanto, um outro aspecto dessa palavra que parece importante para nós: por ser a sede diretiva da vida humana, o “coração” é também a sede da sua liberdade e, em consequência, de sua responsabilidade. Permitam-me explicar estas duas palavras.
Liberdade consiste em poder escolher ou decidir, dizer sim ou não ao que nos é apresentado ou, aceitar com dignidade aquilo que não está em nossas mãos decidir. Neste sentido, liberdade não é um conceito fechado, mas se trata daquela abertura do ser humano para o outro. Pela liberdade eu me ponho numa condição de responsabilidade perante o mundo. Será sempre uma liberdade “para alguém” ou “para algo”. Assim, a filha da liberdade, se assim podemos nos expressar, é a responsabilidade.
Responsabilidade provém do latim “respondere”, o infinitivo do verbo “respondeo”, isto é: responder. Se respondo, respondo a algo ou a alguém, e respondo com algo. Juntemos, pois, os dois conceitos. Responsabilidade consiste na capacidade de responder pelos próprios atos diante das solicitações da vida. Refiro-me à vida, pois nem sempre se trata de uma pessoa que me requer responsabilidade ou uma resposta pelas ações pessoais. Há três instâncias que nos solicitam uma resposta: o Eu, o sujeito interior, nossa consciência acerca de nós mesmos; aqueles que estão do nosso lado, como família, pais, amigos e a própria sociedade; por fim, aquele Outro absoluto, aquela instância final da realidade, a quem chamamos Deus.
Neste sentido, a liberdade consiste em um objetivo traçado, uma meta ou uma razão para a qual tende a minha existência. Isto é, a liberdade pressupõe um projeto vital, um sentido para o qual se projeta a minha vida. Assim, a liberdade consiste na possibilidade ou de autorrealização ou de autodestruição.
Reside aqui o fato de que a nossa vida é sempre a resposta a uma missão fundamental: a de erguermos a nossa vida, tijolo após tijolo, a partir dos materiais das nossas experiências. Isso requer o esforço da obra. Requer a tensão.
Por isso, crescer, amadurecer, formar-se como pessoa, exige que nos coloquemos numa posição de vulnerabilidade. Expormo-nos aos desafios da vida. Deixarmo-nos ser abalados. Pois são os momentos de tensionamento de nossa existência que põem em cheque os nossos valores.
Há, no entanto, aqueles que acham que escondendo-se das dificuldades e fracassos irão se eximir de sofrimentos. No fim, o sofrimento será aquele de alguém que olha para trás e não foi capaz de deixar rastros de bondade por onde passou, testemunhos de compaixão e memória. Passam pela vida como o inseto que passa por nós sem ser notado. Não causam mudanca na vida de outros, sequer em si mesmos. Morrem como nasceram, na insignificancia de suas irresponsabilidades.
Aqueles, porém, que sabem que as dificuldades amadurecem o caráter como o fogo que depura o ouro, que os atritos da existência tornam mais fortes aqueles que o suportam com dignidade, que os fracassos não devem ser negados ou mascarados com falsas aparências de sucesso, esses podem chegar ao final da vida e dizer: “completei a carreira, guardei a fé.”
Uma fé que se expõe aos sofrimentos e ao martírio, ao sacrifício e às renúncias. Uma fé que passa pela cruz e pela via da paixão. Essa fé nos liberta da clausura do nosso eu, nos faz sair do ambiente do nosso egoísmo e nos põe no caminho do Cristo, o único capaz de trazer ao nosso coração a liberdade que nasce, não de uma emancipação rebelde de Deus, mas de um encontro real com nosso Pai. Pois é somente em Deus que verdadeiramente seremos livres.
Pastor Marcone Luiz Baima Pessoa Júnior.
Aluno egresso do Seminário Equatoria